8 de janeiro de 2014

As Escolhas de Adèle

Chega a ser difícil escolher por onde iniciar um comentário sobre Azul é a Cor Mais Quente, afinal em suas três horas de projeção o diretor Abdellatif Kechiche nos apresenta tantas camadas riquíssimas de interpretação. Partindo da graphic novel de Julie Maroh, o diretor propõe ao espectador ser um voyeur da rotina e do amadurecimento de uma garota que está se descobrindo e fazendo a tão difícil transição da juventude para a idade adulta, lembrando muito uma outra sensação desse ano nos cinemas, a desajeitada Frances Ha (2013). Mas se a personagem de Greta Gerwig e Noah Baumbach quer se encontrar profissionalmente e como artista, a protagonista de Azul, Adèle, quer se encontrar através do amor e da sua total amplitude sexual.

O ponta pé inicial para esses acontecimentos se darão ao simplesmente atravessar a rua e cruzar olhares com Emma (Léa Seydoux), uma artista plástica de cabelos azuis. Esse amor à primeira vista deixa um vazio, que Adèle retira, junto de seus colegas na escola, das páginas de A Vida de Marianne, de Pierre de Marivaux. E assim como Marivaux descreve e dá voz a uma história tão feminina, Kechiche faz o mesmo. Com uma delicadeza singular e com Adèle Exarchopoulos como sua Marianne, musa e veículo.

Azul é um filme que trata de sentimentos, do amor essencialmente. E ao traduzi-lo na linguagem cinematográfica pode-se cair em extremos, do piegas ao distanciamento frívolo. Mas Abdellatif opta por demonstrar toda essa paixão através de planos de gestos, olhares, toques e pele. É um cinema carnal, afinal é também através da carne que achamos a forma de expressarmos o que sentimos. E Adèle, tanto atriz e personagem, é utilizada quase à exaustão.

Após aquela troca de olhares com Emma, a vida da nossa “heroína” vira do avesso. O garoto que paquerava na escola já não faz sentido e meio sem esperar, é surpreendida por uma colega que lhe oferece a porta de entrada para uma nova possibilidade, um universo em que garotas beijam garotas. E Adèle se joga com força, mas é rejeitada pela garota que tenta explicar que “foi só um beijo”. Essa mesma garota assistirá de longe a cena em que a protagonista é confrontada por suas colegas se é ou não lésbica em uma discussão forte. Kechiche nesse momento passa a representar a França, os gays que de um lado não se assumem por temer represálias e a sociedade classe-média do país que não sabe lidar com a diversidade sexual. Uma França insegura corre por Azul. Seja através das colegas que temem que Adèle queira se relacionar de alguma outra forma com elas como também, através da insegurança financeira. É nessa parte que, quase explicitamente, Kechiche nos entrega um comparativo de duas famílias. Se a de Emma é libertina, artística, já passou por uma separação e janta ostras afrodisíacas, por outro lado a de Adèle é o básico. Seus pais são casados e jantam religiosamente macarrão à bolonhesa com vinho tinto e criaram a garota para seguir um futuro que não precisa ser brilhante, mas sim seguro financeiramente, afinal a crise pode estar logo ali na esquina. Adèle prefere ser professora primária, apesar de ler, interpretar e escrever muito bem, tudo para se tornar uma ótima escritora. Ela não almeja grandes planos. Existir e estar segura parece bastar.

E é esse um dos pontos da segunda parte do filme, que é dividio em dois capítulos, o momento em que o casal se descobre e o momento em que tudo começa a desmoronar. O relacionamento vai sofrendo desgastes. Emma parece almejar uma companheira mais ambiciosa e Adèle gostaria de ter mais ainda de Emma, que parece ocupada com sua carreira e ambição, que lhe faz tanto falta. Com essa personagem errante e desligada, Exarchopoulos entrega a performance do ano, totalmente entregue de corpo e alma e aos improvisos, que Kechiche decidiu modificar o título na França para A Vida de Adèle, referência ao livro de Marivaux e também à própria atriz e os métodos de filmagem improvisados do diretor e que impossibilitavam manter o nome da personagem da graphic novel de Marioh, Clementine, já que todos no set a chamavam pelo seu nome da atriz.

O fato é que filme é feito de escolhas de Adèle, a personagem, e o universo ao seu redor é constituído de ação e reação. Em nenhum momento Kechiche rotula sua personagem-título de lésbica. Ela experimenta sua sexualidade, o que sente. E escolhe amar sem barreiras. E escolhe também trair Emma com um homem. E é a partir daí que se desenrolam cenas explosivas e de muito arrependimento. Belíssimas e dolorosas. São as escolhas, e às vezes elas são feitas da pior maneira possível. Mesmo assim, o coração dela pertence à Emma e as tentativas de arrumar a bagunça ecoam na mente. Em um dos momentos mais fortes, as duas se encontram em um café.  A desconstrução do casal é devastadora. E como seguir em frente quando aquela que tanto foi amada e a amou já não a ama mais?

Na cena final, em um coquetel de uma exposição de Emma, Adéle realiza que sua ex seguiu com a vida, constituindo uma família, continuando com seus trabalhos mesmo com o coração partido de ter sido traída, mesmo que as coisas não tenham mais aquele calor que o relacionamento de ambas possuía. Mas ela parece não acreditar, já que, por outro lado, ela ruminou esse amor e manteve a esperança de que um dia teria uma segunda chance. Nem as investidas de um conhecido dos velhos tempos com Emma ela enxerga. Sai da exposição cega, trilhando de volta o caminho pelo qual chegou. O cara interessado corre atrás dela e a torcida vibra com um final feliz. Mas ele pega um rumo oposto e como espectadores, notamos que o reencontro de ambos vai ser quase impossível. Se ele saiu em busca do carro, a rua que a garota tomou é na contramão. Somos levados a um final que não passa nem perto dos romances americanos. Mas é ali que inicia a verdadeira vida de Adèle, chocada com a realidade e, quem sabe, obstinada a superar seu primeiro coração partido. Em meio a tantas interpretações, Kechiche ainda nos oferece esse final em aberto. Mas deixa, quem sabe, uma mensagem... o que não mata, fortalece.

Publicado originalmente na edição #6 do Zinematógrafo.

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